segunda-feira, 26 de outubro de 2015

Indigesto

Eu tinha uma pizza adormecida me esperando pra ser almoçada, um livro de Marx e uma revista sobre feminismo dormindo comigo há alguns dias já. Eu tinha um coração sentido por ter se privado de sentir porque o mundo, ou a vida, não são como os filmes de Hollywood. Minha vida não durava duas horas como num longa-metragem e eu estava prestes a completar 17 ciclos de vida, e meus aniversários em fevereiro eram sempre tristes, mesmo que comemorados no carnaval. Eu tinha umas cicatrizes de Frida esperando para serem costuradas em mim e um coração para amputar, porque amar era abortivo demais para mim, que fria e distante, sentia muito por sentir tão pouco. Eu tinha Durkheim gritando na minha cabeça que o mundo é tão vil e que mesmo gostando tanto de gente e me sentindo tão humana, era tão ninguém quanto o mendigo da esquina que pede esmola e mora debaixo do viaduto da Mooca e que pior, eu era também, tão vil quanto o mundo. Eu era nada, uma peça do sistema que se morre ou para é substituída mais depressa do que o macarrão instantâneo que eu almocei a semana inteira. Eu tinha Simone de  Beavoir me dizendo todos os dias que mulher não nasce, mas torna-se. É a cada dia eu era mais mulher que ontem, porque eu comecei a gostar de mim, do meu corpo, dos meus seios que eram tão ou mais caídos que os da minha avó, mas que também ficavam muito bonitos em mim com 17 quase 18 anos. E que meu cabelo não era ruim para eu ter passado tantos anos da minha vida esticando, queimando e prendendo para que ele tomasse jeito e fosse um cabelo normal. Mas ele sempre foi, eu é que era ruim e sempre o maltratei tanto. Não uso mais sutiã para ir ao hipermercado que fica mais distante que a padaria da esquina ou a loja de doces da rua de trás, eu deixo meus seios livres como os meus cabelos, que não são ruins, mas que ficaram por muito tempo encarcerados num padrão tão cruel e incisivo. Eu tinha uma vida para viver, mas eu estava a quatros dias sem sair de casa me sentindo tão controversa, tão vi a e morta, que eu sentia tanto mas não pulsava nada. Tão parada e estagnar entre quatro paredes tão alvas e puras quanto o sangue de Eduardo que escorreu tão maciço e pesado depois de ter levado um tiro de fuzil na cabeça. Eu já passei dos 16, graças a Deus, de morrer com 10 numa tarde quinta-feira eu me livrei. Eu sou tão nada mesmo que Eduardo morreu sem saber que eu o amava. Eu tinha tanta coisa pra fazer.